Existe alguma relação entre ganho de peso e cirurgia da vesícula?
Pacientes submetidos a colecistectomia relatam em consultório terem engordado após a extração do órgão; o que há de verdade nisso?
A obesidade atualmente tem apresentado um enorme crescimento no mudo todo e, apesar de não ser “contagiosa”, entendemos como um problema epidêmico.
Ao nos referirmos dessa forma, usamos o termo epidêmico emprestado das doenças infecciosas, mas que acaba sendo apropriado como analogia, diante da rápida e disseminada elevação de casos da obesidade em quase todas as populações.
A vesícula biliar é um órgão anexo presente no organismo humano em forma de pera que armazena a bile mas não é responsável por sua produção.
O suco biliar (bile) é um fluído produzido pelo fígado (em torno de um litro por dia) e armazenado na vesícula biliar, que tem capacidade de armazenar 20 – 50 ml de bile. A bile é caracterizada por ser alcalina e amarga sendo 85% água, 10% bicarbonato de sódio e outros ácidos biliares (também chamados de sais biliares), dos quais seriam 3% pigmentos, 1% gordura, 0,7% sais inorgânicos e 0,3% colesterol.
Após sua produção e secreção hepática, a bile é armazenada e concentrada na vesícula biliar durante o período de jejum, e é liberada no intestino durante a contração da vesícula biliar, um passo iniciado por estímulo neuro-hormonal induzido pela refeição – e é lançada apenas quando o alimento que contém lipídeos (gordura) entra no trato digestivo.
Na bile, os sais biliares têm por objetivo auxiliar a absorção de diferentes tipos de gorduras, por meio de sua emulsificação. Esses sais biliares atuam na emulsificação das gorduras, com a homogeneização da suspensão de gordura e agem de forma análoga à do detergente no óleo. Facilitam a ação de uma enzima produzida pelo pâncreas (lipase), aumentando a superfície de contato gordura-enzima.
A colelitíase (cálculo de vesícula biliar) pode obstruir a drenagem da bile e abrange um espectro de condições que variam de cálculos biliares assintomáticos, a doença de cálculo biliar sintomática não complicada (cólica biliar) e a doença de cálculo biliar complicada (manifestando-se com colecistite aguda, colangite ou pancreatite biliar).
Esses processos, por sua vez, podem levar a consequências metabólicas negativas, incluindo a síndrome metabólica (SM). A SM é uma condição em que coexiste no mesmo paciente a obesidade central com aumento da circunferência abdominal, elevação dos triglicerídeos, redução do HDL-colesterol, aumento da pressão arterial e da glicemia de jejum.
Essa é uma combinação importante de fatores de riscos cardiometabólicos e faz com que o paciente com SM represente um grande problema de saúde pública. A SM já atinge uma prevalência de cerca de 25% dos adultos em todo o mundo e está associada ao aumento do risco de doenças cardiovasculares (DCV), DM2, doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), câncer hepático, elevação ácido úrico e gota e também de colelitíase. Mais recentemente vem merecendo grande atenção a possibilidade de a colecistectomia já ser considerada um fator de risco adicional para o desenvolvimento da SM. Isso desperta uma preocupação uma vez que existe um número elevado de cirurgias realizadas no mundo todo o que poderia potencialmente afetar milhões de pacientes.
A vesícula biliar, com sua função de reservatório, atua como um marca-passo fisiológico da circulação entero-hepática dos sais biliares. Essa função é mediada pela coordenação de mecanismos neuro-hormonais distintos envolvendo o fígado e o intestino. Portanto a remoção da vesícula biliar acaba levando ao aumento das taxas de recirculação entero-hepática dos sais biliares em pelo menos duas vezes em relação à frequência normal, particularmente durante o jejum, levando à reciclagem intestinal acelerada, aumento das taxas de secreção de sais biliares e colesterol na bile mas com a absorção de gordura preservada.
Esta nova condição anatômica leva ao aumento da proporção dos sais biliares “secundários” pela ação de bactérias intestinais diante reciclagem intestinal acelerada e prováveis mudanças na microbiota intestinal. Tais alterações podem induzir diarréia osmótica, pelo tempo de trânsito do intestino grosso acelerado. Os indivíduos colecistectomizados não são capazes de provocar uma rápida liberação dos sais biliares para o duodeno em resposta à ingestão de alimentos e como resultado, isso pode alterar o ritmo de ativação dos receptores induzidos pelos sais biliares, resultando em anormalidades metabólicas. As respostas de glicose e lipídios nos indivíduos operados tornam-se exageradas após uma refeição, já que nos indivíduos colecistectomizados as ações induzidas pelos sais biliares seriam incapazes de levar prontamente uma resposta protetora para equilibrar flutuações nos níveis de glicose e lipídios induzidas pela ingestão de alimentos aumentando o risco de SM. De acordo com essa visão, a função da vesícula biliar não seria apenas fornecer um “maior poder digestivo”, mas também permitir que a bile possa equilibrar melhor o estresse metabólico causado pela ingestão periódica de alimentos.
A obesidade pode estar associada com alterações da microbiota intestinal, influenciando tanto a diversidade e a função microbiana, agindo nos sais biliares e na sensibilidade à ação periférica da insulina que é altamente dependente das bactérias do filo Firmicutes.
Um estudo recente descobriu que, comparados aos controles, os pacientes com cálculos biliares têm altas concentrações de sais biliares fecais e uma diminuição da diversidade microbiana com redução das bactérias benéficas do gênero Roseburia e aumento de Oscillospira, o que correlacionou-se positivamente com os sais biliares “secundários”. Assim, a disbiose intestinal poderia ser uma característica importante em pacientes com cálculos biliares. Além disso, a colecistectomia, que altera o fluxo biliar para o intestino, pode ser seguido por interações prejudicadas entre os sais biliares e a microbiota intestinal
Diante do exposto até aqui, teoricamente a retirada da vesícula biliar poderia não ser assim tão inócua e teria a potencialidade de desencadear alterações metabólicas e ganho de peso – mas ainda é um assunto controverso.
Algumas poucas pesquisas mencionaram alteração de peso após a colecistectomia. Em um estudo com 103 pacientes no Reino Unido, foi descrito um aumento do peso corporal 6 meses após a cirurgia em relação ao pré-operatório, tanto em homens e mulheres, que ganharam 4,6% e 3,3%, respectivamente. Outros estudos que compararam indivíduos com e sem cálculos biliares relataram que os indivíduos com os cálculos biliares, tinham o índice de massa corporal (IMC) e circunferência da cintura que tendiam a ser mais altos comparados com os indivíduos que não tinham cálculo e essas diferenças foram ainda mais pronunciadas nos indivíduos colecistectomizados. Em um desses estudos realizado na China com 5672 pacientes os autores mostraram uma relação entre colecistectomia e aumento do peso, da glicemia de jejum e da SM. Já em um outro estudo a tendência para um aumento no IMC após a colecistectomia não foi observada nos pacientes submetidos a cirurgia não biliar.